Brasil: Matopiba concentra mais da metade das queimadas no Cerrado

16-9-2019, De Olho nos Ruralistas
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Uma das principais fronteiras do agronegócio no Brasil, região também lidera casos no acumulado de 2019, com aumento de 44,5% dos incêndios em relação a 2018

Por Caio de Freitas Paes

Não é apenas a floresta amazônica que arde: o combalido Cerrado também sofre com um aumento alarmante das queimadas. O problema na Amazônia dominou as manchetes após o fatídico “dia do fogo”, em 10 de agosto, quando fazendeiros, grileiros e outros entusiastas iniciaram uma imensa queimada, combinada previamente, às margens da BR-163. Mas o aumento generalizado de incêndios em 2019 atinge diretamente o Cerrado.

Mesmo que seja mais adaptado ao fogo e esteja em plena estiagem, quando as chamas se alastram mais facilmente, o bioma passa por um acréscimo de 44,5% dos focos identificados em relação a 2018. Até 15 de setembro, foram 9,6 mil focos a mais que o mesmo período de 2018 — o bastante para superar os casos registrados em todo o ano anterior.

Uma das principais fronteiras do agronegócio do país, o Matopiba sofre com o avanço do fogo. Trata-se de uma área com 73 milhões de hectares, formada pelo estado do Tocantins e partes do Maranhão, Piauí e Bahia. Onze dos vinte municípios mais incendiados em todo o Cerrado desde o “dia do fogo” ficam lá, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Se levarmos em conta o acumulado de 2019 até agora, o problema persiste, pois quatro dos cinco municípios mais atingidos estão no Matopiba: São Formoso do Araguaia e Lagoa da Confusão, no Tocantins; Balsas e Mirador, no Maranhão.

De acordo com o satélite de referência do projeto Queimadas, usado para compor a série temporal e permitir a análise de tendências, desde o início de 2019 houve por volta de 41 mil queimadas em todo o Cerrado, pouco mais de um terço do observado em todo o país. Em 2018, o problema tinha se amenizado em relação ao ano anterior: em 2017, a esta altura eram contabilizados mais de 50 mil focos. Já em 2019, com exceção do mês de maio, em todos os outros houve aumento na comparação com 2018 — o suficiente para que os casos registrados em 2019 superem o acumulado do ano anterior.

“Dizemos que o fogo, historicamente, é uma ferramenta usada para a abertura de áreas e empobrecimento do solo”, diz Mercedes Bustamante, professora do departamento de Ecologia na Universidade de Brasília (UnB). Ela conta que, no Cerrado, é comum a retirada do que há de madeira de qualidade por meio do “correntão”. “Depois, é colocado fogo no que resta”.

De 1970 para cá, estima-se que a savana brasileira já perdeu mais da metade de sua vegetação original, substituída gradativamente por pastagens e atividades agrícolas: mais de 10% da soja produzida no mundo sai dali. Sua conservação é essencial para todos: com 2 milhões de quilômetros quadrados, o Cerrado dá origem a dois terços das bacias hidrográficas brasileiras, e por isso é considerado o berço das águas do país.

Tanto na Amazônia quanto no Cerrado é muito comum que a queimada seja uma etapa seguinte ao desmatamento. O Matopiba se destaca em ambos os quesitos. De acordo com o Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás, entre 2007 e 2015 a região perdeu mais de 25 mil km2 de suas matas nativas. Praticamente um estado de Alagoas destruído em oito anos.

Na janela temporal do “dia do fogo” — especificamente no mês que compreende sua véspera, 9 de agosto, até 9 de setembro –, um local de nome simbólico no Tocantins encabeça a lista das mais atingidas: Lagoa da Confusão. O município também ocupa o topo da lista dos mais incendiados no bioma na somatória do ano até o dia 9, com 1.122 focos identificados pelo satélite de referência do Inpe. Tamanho destaque se deve justamente ao mês relativo ao “dia do fogo”, quando 545 novos focos foram registrados.

No Brasil profundo, queimadas servem a muitos usos e senhores. Por vezes, a vegetação nativa torna-se um obstáculo aos pecuaristas e monocultores — que não poupam esforços para limpar áreas, plantando pastagem e soja em seu lugar. Não são os únicos favorecidos, pois grileiros ateiam fogo para expulsar indígenas, quilombolas, assentados e agricultores de suas terras. Sem contar os madeireiros que integram o comércio ilegal: eles usam o fogo para se livrar dos restos que deixam pelo caminho. Juntos, eles protagonizam hoje a crise das queimadas.

“Percebemos um enfraquecimento na fiscalização dos órgãos responsáveis, como o Ibama e as secretarias estaduais, e a precarização das brigadas do PrevFogo [do Ibama]“, afirma o padre Alex Venuncio, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Alto Araguaia. “É nessa época do ano que monitoramento e prevenção são mais necessários, porque o fogo se espalha mais facilmente”.

Venuncio estima que mais de 70% da região onde a CPT atua ali tenha sido destruída. Isso significa algo em torno de 81 mil km² quase o tamanho da Áustria. O projeto Queimadas, do Inpe, mostra que municípios nessa divisa entre Mato Grosso e Tocantins estão entre os mais atingidos do país. São lugares como Formoso do Araguaia (TO), Pium (TO), Ribeirão Cascalheira (MT) e São Félix do Araguaia (MT).

Campeã das queimadas no Cerrado, Lagoa da Confusão fica na zona de influência do arco do desmatamento, uma área de 500 mil km² que abrange do sudeste ao oeste do Pará, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre. Além do intenso tráfico ilegal de madeira, ali há amplo domínio da pecuária e das monoculturas de soja em geral.

Em pleno Araguaia-Xingu, Lagoa da Confusão viveu um boom da agropecuária nos últimos anos. Dali até a Ilha do Bananal (TO), outro foco de conflitos fundiários, houve intensa expansão do agronegócio: em 2016, estimativas apontavam um rebanho de mais de 93 mil cabeças de gado em áreas onde a prática é proibida. A pecuária ganhou força com o sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a fragilidade econômica dos indígenas dali, pressionados pelos fazendeiros a arrendar suas terras.

“Aqui existem conflitos fundiários históricos, e temos também uma ampla presença de assentados pela reforma agrária: há 70 assentamentos na prelazia [do Alto Araguaia]”, diz o coordenador da CPT. “Existe uma tensão constante e, em muitos casos, as chamas vêm de fora de assentamentos, áreas de proteção e reservas”.

O segundo município mais atingido no bioma no mês do “dia do fogo” é Mirador, no Maranhão, com 506 focos. Com um tamanho equivalente ao de Porto Rico, é um dos vinte pontos que contêm os maiores resquícios de Cerrado dentro do Matopiba. Parte considerável dessa vegetação nativa fica no Parque do Mirador, unidade de conservação estadual mais destruída no bioma nesse mesmo período. Entre 9 de agosto e 9 de setembro, houve pelo menos 312 focos dentro de seus 437 mil hectares.

Dois municípios próximos de Mirador figuram na lista dos mais atingidos: Barra do Corda, com 326 focos, e Fernando Falcão, com 206. Juntos, esses três locais se encontram em uma zona muito cobiçada por madeireiros e, por isso, há constantes invasões nas terras indígenas mais próximas. São as reservas Cana Brava/Guajajara e Kanela as mais afetadas por essas incursões clandestinas; na Terra Indígena Kanela, por exemplo, há um conflito latente desde março de 2018.

Com anuência do Instituto de Colonização e de Reforma Agrária (Incra) e da prefeitura de Fernando Falcão, a reativação de uma estrada que atravessa a reserva tem causado danos profundos sobre os povoados de Aldeia Velha e Escalvado. Há denúncias de desaparecimento e morte de pelos menos dois indígenas ali. Em abril, um grupo de não indígenas armados invadiu a área para remendar a estrada, após membros do povo Memortunré-kanela terem destruído uma ponte no caminho. É grande o temor de uma escalada do conflito, com risco de mais mortes em uma região marcada nas últimas décadas por massacres.

Na prática, as queimadas no Cerrado fazem parte de um ciclo de ocupação de áreas, degradação ambiental e desmatamento do que resta do bioma. “Muitas dessas regiões mais atingidas já são marcadas por conflitos fundiários”, diz Mercedes Bustamante. “Além disso, estamos em um período em que o fogo se espalha mais facilmente pelo Cerrado, favorecendo o seu uso criminoso”.

Com frequência, os incêndios são usados para afugentar moradores das áreas visadas, além de valorizar as terras – artimanha muito usada na Amazônia. Pelo choque de tantos interesses, há tensão entre povos indígenas, quilombolas e posseiros ou arrendatários. Em geral, o resultado é a destruição do que ainda resta de Cerrado no Matopiba.

Na savana brasileira vivem mais de oitenta grupos indígenas, como os Avá-canoeiro, Karajá, Krahô, Tapuia e Xavante. São eles, muitas vezes, os responsáveis pela preservação do que ainda resta do bioma. Desde 2010, o Cerrado perdeu pelo menos 80 mil km² de suas matas, o equivalente às áreas de Holanda e Suíça juntas.

Nesse contexto, áreas de preservação garantidas pela Constituição, como as terras indígenas, tornam-se um empecilho para o avanço do agronegócio e de atividades extrativistas. Em 2019, essas áreas de proteção estão sob crescente risco por causa das queimadas: entre janeiro e agosto foram mais de 9 mil casos identificados em reservas no país, um aumento de quase 90% na comparação com o mesmo período em 2018. Especialistas defendem que há relação entre o problema e a postura do governo de Jair Bolsonaro, tido como conivente com aqueles que praticam crimes ambientais, como os incêndios florestais sem autorização.

No período relativo ao “dia do fogo”, a gigantesca Terra Indígena Kadiwéu foi a mais atingida: foram identificados 451 focos de incêndio em seus limites. A reserva é imensa, com quase 540 mil hectares — quase o tamanho da capital de Roraima, Boa Vista — no encontro com o Pantanal, no município de Porto Murtinho (MS), próximo de Corumbá e do Paraguai.

Esta é uma das terras indígenas mais antigas do Brasil, com a primeira demarcação feita ainda na época de Dom Pedro II, graças à participação dos Kadiwéu — exímios cavaleiros e guerreiros — na Guerra do Paraguai. Hoje, a reserva abriga por volta de 1.700 indígenas da etnia junto a outros povos, como os Chamacoco, Kinikinau e Terena.

Graças à recorrência das queimadas, a reserva conta com duas brigadas de combate ao fogo mantidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com participação de indígenas nas equipes do PrevFogo. As condições, porém, são precárias. Há trinta profissionais ao todo, número muito inferior ao necessário para resguardar um território tão vasto como esse.

Além do mais, há intensa presença de pecuaristas na TI Kadiwéu desde os anos 50. Durante a ditadura, houve invasões em territórios históricos dos indígenas, inclusive com a anuência do antigo Serviço de Proteção ao Índio, o SPI. No início dos anos 80, a reserva viveu uma escalada nos conflitos entre posseiros e indígenas, com algo como 1.800 invasores vivendo dentro de seus limites à época.

Não à toa, hoje toda a região que a cerca é dominada pela pecuária. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, havia pelo menos 589 mil cabeças de gado em pouco mais de 1 milhão de hectares, ou seja, em uma área do tamanho do Líbano dentro de Porto Murtinho. Há graves problemas sociais ali, como casos recorrentes de trabalhadores encontrados em condições análogas à de escravos: entre 2013 e 2017, pelo menos 37 pessoas foram resgatadas e 76 autos de infração foram lavrados em Porto Murtinho e, ao lado, em Corumbá (MS).

Em pleno Matopiba, o Parque Indígena Araguaia foi a segunda reserva mais atingida desde o “dia do fogo”, com 373 focos de incêndio captados pelo satélite de referência. O território abrange três municípios no Tocantins (Formoso do Araguaia, Lagoa da Confusão e Pium) que estão na lista dos mais destruídos no Cerrado desde janeiro.

Essa mesma terra indígena encabeça a lista das mais atingidas no bioma desde o início do ano, com 1.376 focos contabilizados. É mais que o dobro do observado na segunda reserva mais afetada até agora, a TI Kadiwéu, com 605 focos registrados no compilado até o dia 9.

“As queimadas se alastram por muitos territórios indígenas onde atuamos, como no caso da TI Urubu Branco, habitada pelos Tapirapés”, diz o padre Alex Venuncio. “Ali, por exemplo, sabemos que as chamas vieram do norte, uma área com muitas fazendas de gado”.

Como se não bastassem os atuais incêndios, o problema tem se repetido nos últimos anos. Em 2017, as chamas tomaram o Parque Nacional do Araguaia, vizinho da terra indígena, quando a unidade de conservação perdeu pouco mais de 330 mil hectares. É como se o parque nacional tivesse perdido duas vezes a área da capital paulista, São Paulo, por causa das queimadas.

O Parque Indígena Araguaia abriga mais de 3.500 Avá-Canoeiro, Iny Karajá, Javaé e Tapirapé em pouco mais de 1.500 hectares, uma área equivalente ao município de São Caetano do Sul (SP). A reserva fica no entorno da Ilha do Bananal, no encontro entre Amazônia e Cerrado, e é cercada pelos Rios Araguaia e Javaés. Além da força da pecuária ali, há outros setores à espreita, como o da mineração.

Há ainda a importância ambiental deste território indígena. De acordo com pesquisas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), todo o entorno da Ilha do Bananal é um dos pontos mais vulneráveis ao aquecimento global no país. A derrubada de matas nativas acentua os efeitos das mudanças climáticas, principalmente quando dá lugar às pastagens e à cultura do gado — como no caso da reserva indígena no Araguaia.

“Se juntarmos o aumento da temperatura global aos efeitos locais do desmatamento, a tendência é que haja secas mais prolongadas e mais intensas – e isso não somente no Cerrado. É a cobertura vegetal que pode nos proteger desses efeitos, porque ela devolve água em forma de vapor à atmosfera mas, quando há desmatamento intenso e queima de áreas, isso fica comprometido”, explica a professora Mercedes Bustamante, da UnB.

A Terra Indígena Cana Brava/Guajajara completa a lista das três mais atingidas desde o “dia do fogo”, com 342 focos registrados. O local abriga 4.500 Guajajara, dispostos em 137 mil hectares –- praticamente o tamanho do município de Piracicaba (SP). Também no Matopiba, essa reserva fica na mesma região de Barra do Corda, Mirador e Fernando Falcão, o ponto mais destruído pelas chamas no Maranhão.

A extração ilegal de madeira é intensa ali, e a presença de invasores por conta da prática traz alto risco aos indígenas. Historicamente, a região é ocupada pelos Guajajara e nos últimos anos foi palco de assassinatos de lideranças desse e de outros povos. Em 2016, num período de apenas três meses, foram seis mortos em diferentes aldeias. Houve requintes de crueldade em alguns dos homicídios, com sinais de tortura nas vítimas — em geral, envolvidas na luta por demarcação de terras e retirada de invasores das áreas reivindicadas por indígenas.
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