"Não existem terras livres para o ProSavana" critica Calisto Ribeiro

Deutsche Welle | 10/10/2013
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Calisto Ribeiro esteve em Bielefeld, na Alemanha, para falar do ProSavana e do receio de que haja uma ocupação de terras de pequenos agricultores por latifundários

Calisto Ribeiro, da ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula, condena a falta de transparência do projeto de desenvolvimento agrícola e mostra-se preocupado com a "usurpação de terras dos camponeses".

São muitas as críticas da sociedade civil e de organizações dos camponeses em relação ao ProSavana, um projeto dos governos do Brasil, do Japão e de Moçambique que pretende desenvolver a agricultura no norte do país africano, nomeadamente no chamado corredor de Nacala, nas províncias de Nampula, Niassa e Zambézia.

Acima de tudo, receiam que haja uma ocupação de terras de pequenos agricultores por latifundários. Uma das vozes que critica o ProSavana é Calisto Ribeiro. Em entrevista à DW África, o responsável da ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula mostra-se preocupado com a falta de conhecimento que os camponeses – os principais afetados – e a própria sociedade civil têm sobre o ProSavana, e critica que o projeto não está a ser desenvolvido com a participação das comunidades.

DW África: Moçambique é um dos países com uma produtividade agrícola muito baixa, uma das mais baixas do mundo. Não seria ideal ter um projeto como o ProSavana, o projeto tripartido de modernização da agricultura no norte de Moçambique?
Ouvir a entrevista com Calisto Ribeiro da ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula

Calisto Ribeiro (CR): Eu penso que a ideia de um projeto como o ProSavana é uma ideia muito boa para ajudar o desenvolvimento de Moçambique. Mas o grande problema é o modelo e a forma como o projeto ProSavana aparece.

Aparece de forma obscura, de forma escondida e não está a ser desenvolvido com a participação de todos aqueles que vão ser ou que são os atores do desenvolvimento de Moçambique, sobretudo das comunidades locais, o grupo-alvo e residente nas áreas onde esse programa vai ter lugar.

DW África: O que é que se sabe, por exemplo, na província de Nampula sobre a implementação do projeto?

CR:Os camponeses pouco ou nada sabem sobre o programa. Esta é uma inquietação muito grande para nós. Se o programa é para ser implementado no seio dos camponeses e os camponeses vão fazer parte deste programa, então fica complicado saber por que é que os camponeses não conhecem o programa.

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O ProSavana será implementado numa zona onde predomina a agricultura tradicional (na foto: produção de arroz em Mopeia, província da Zambézia)
Não só os camponeses, a sociedade civil, que de alguma forma tem facilidades de acesso à informação, também não sabe sobre o ProSavana. E mesmo da parte do Governo, os oficiais do Governo – quer sejam administradores, diretores distritais da Agricultura ou mesmo chefes dos postos das localidades – e os líderes das comunidades não conhecem o programa.

DW África: Algumas ONGs da Europa já classificaram o projeto ProSavana como "o maior roubo de terras da História de África". Será que já existe um roubo ou uma ocupação efetiva de terras de camponeses que foram desalojados pelos projetos do ProSavana?

CR: Sem dúvida. Essa é uma das grandes ameaças que nós sentimos: que o ProSavana vai criar ou está a criar a usurpação das terras dos camponeses. A indicação que nós temos é que o ProSavana vai ocupar grandes extensões de terra.

DW África: Como é que são implementados estes projetos?

CR: Normalmente, a lei moçambicana estabelece que, no caso desse tipo de situações, tem que haver consultas comunitárias. A comunidade tem que ser consultada, tem que ser informada sobre o programa, tem que ter a possibilidade de refletir e decidir se vale a pena ou não conceder o espaço que se pretende. Isto é que a lei prevê.

Mas no caso específico dos projetos de impacto que estão a ter lugar no âmbito do programa, isto não existiu. Consequentemente, os camponeses estão a perder as suas terras de cultivo porque têm que as dar aos projetos de impacto rápido. E isto está a criar conflito.

DW África: Em que zonas nomeadamente é que isso já aconteceu?

CR: Já temos casos específicos no distrito de Gurué, província da Zambézia, na região do Lioma. E temos os casos do Ribaué [na província de Nampula] e alguns casos estão situados em Mogovolas [também na província de Nampula]. Portanto, são alguns distritos que estão a ser caraterizados por esta situação de usurpação de terras para dar lugar ao ProSavana e consequentemente estão a resultar em conflitos.

DW África: E o que é que está a ser plantado nestas antigas machambas dos camponeses locais?

CR: O que está a ser feito lá são alguns testes de ensaio, algumas experiências de produção e de multiplicação de sementes. A soja, por exemplo, é a semente que está a ser preparada neste momento. E também se fala no milho e no gergelim, entre outras poucas espécies que vão ser fomentadas no âmbito do programa ProSavana.

DW África: Quanto é que os camponeses receberam em contrapartida?

CR: Recebem uma indemnização de cerca de 500 meticais, qualquer coisa como 12 euros por hectare. Isto é muito, muito pouco.

DW África: Se olharmos para o PRODECER, que é o projeto “pai” do ProSavana, que também foi implementado com a ajuda do Japão no Cerrado, na savana brasileira, nos anos 70 e 80, é de esperar que em Moçambique sejam criadas também grandes culturas de soja como aconteceu no Cerrado?

CR: De acordo com as imagens que nós temos do Brasil sobre o PRODECER, primeiro, ocupa vastíssimas áreas de terra. Na minha opinião, se assim for em Moçambique, então não sei qual vai ser o destino dos camponeses. As imagens também reportam a utilização de monoculturas. Isso significa que aquelas culturas do setor familiar, digamos diversificadas, vão deixar de existir em Moçambique. Estarão em risco.

Em terceiro lugar, também temos indicação, a partir dos residentes em volta do Cerrado do Brasil, de problemas de uso de pesticidas e agroquímicos que têm efeitos bastante nocivos na saúde das pessoas, nas culturas e, em geral, na vida ambiental daquela região.

Achamos que não é possível um modelo como o que está a acontecer no Cerrado acontecer em Moçambique. Aliás, por causa disto, porque nós fomos para o Brasil, onde tiramos imagens que trouxemos para Moçambique, e começamos a reivindicar e a repudiar o programa, eles mudaram de discurso. Foi a partir daí que começaram a dizer que não, que o programa ProSavana não vai retirar nenhum camponês da sua área.

DW África: Como é possível, com a ideia de criar milhões de hectares de novas plantações, não desalojar nenhum camponês? A zona onde o ProSavana é implementado, no norte, é relativamente povoada.

CR: Aliás, é impossível. Se é para implementar algo assim, que implique ocupação de grandes extensões de terra, obviamente os camponeses têm de ser retirados. Não sei como é que vai ser, mas é impossível. Há um conflito completamente visível. Ou ocupa grandes extensões de terra e as pessoas saem dali ou então o programa não vai ocupar nenhuma área e os camponeses continuam nas suas áreas.

DW África: Dentro das apresentações do ProSavana, muitas vezes também foram apresentados outras vertentes do programa, para além das grandes culturas de soja para a exportação ou para alimentar galinhas no norte de Moçambique, foram apresentadas ideias como a criação de cooperativas, o maior uso de máquinas na agricultura local e a substituição de antigas árvores de caju. Seriam aspetos para eventualmente melhorar ou tornar viável o programa para os camponeses locais?

CR: Acho que sim. Seriam aspetos bons a considerar. Ou seja, na nossa opinião, é preciso um modelo que permita, de forma gradual, esta prática. Todos nós sabemos que os camponeses, em termos gerais, são camponeses não escolarizados.

E penso que o processo de capacitação dos camponeses - para se ajustarem aos modelos que se pretendem desenvolver na base do programa - vai levar muito tempo. É isto que para nós não está claro.

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Tratores muito raramente são usados ​​na agricultura moçambicana (na foto, a empresa OLAM International prepara campos de cultivo em Mopeia, na Zambézia)
E mais uma vez dizemos: como é que isso vai ser possível? Como é que um camponês vai estar integrado neste sistema? Como é que um camponês vai competir com uma máquina que ele nunca viu? Ou se for para usar ou beneficiar daquela máquina, como é que isso vai ser possível? Então, é isso que estamos sempre a questionar. Como? E ainda não sabemos como é que isso vai ser e nunca ninguém nos respondeu.

DW África: Se tivesse um desejo para um ProSavana ideal, qual seria?

CR: Eu tenho um desejo para um ProSavana ideal. Desejo que o ProSavana nos próximos 10, 15, 20 anos mude a vida das pessoas. Mudar no sentido positivo, para a melhoria das condições dos camponeses. Por exemplo, acesso a serviços básicos como a educação e a saúde, vias de acesso. Estamos numa situação de famílias que não conseguem sequer um dólar, nem meio dólar por dia. Vivem muito abaixo do nível de meio dólar.

Então, eu gostaria que o ProSavana permitisse, daqui a uns 10, 15, 20 anos, que as pessoas, os camponeses tivessem um rendimento um pouco maior do que aquele que têm hoje, casas cobertas de chapas de zinco, crianças a ir para a escola. É isto que gostaríamos que o ProSavana trouxesse. Se o ProSavana viesse para incluir os camponeses, de forma pró e ativa, eu até penso que isso poderia servir para dizer: muito bem-vindo ProSavana!

Calisto Ribeiro, da ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula, esteve na Alemanha a convite de duas ONGs alemã, da rede de desenvolvimento INKOTA e do Comité Coordenador Moçambique Alemanha – Koordinierungskreis Mosambik KKM.

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